
Biutiful (ESP/MEX, 2010), dirigido por Alejandro González Iñárritu, escrito por Alejandro González Iñárritu, Nicolás Giacobone e Armando Bo; com Javier Bardem, Maricel Álvarez, Hanaa Bouchaib, Guillermo Estrella, Eduard Fernández, Diaryatou Daff, Cheng Tai Shen, Luo Jin, e outros.
Existem filmes que poderiam ser muito melhores se parte deles pudesse ser descartada, pois o que os enfraquece são justamente momentos desconexos e desnecessários que quase nada acrescentam a trama, e o pior, não se relacionam homogeneamente com o resto do filme. Biutiful é um exemplo destes. Narrando a história de Uxbal (Bardem), um homem que cria praticamente sozinho seus dois filhos graças a trabalhos ilícitos (como a venda de produtos piratas nas ruas de uma cidade da Catalunha ou a negociação de trabalhadores chineses não legalizados), o filme nos mostra a difícil rotina deste, que precisa conciliar o trabalho com as funções de pai, já que não pode contar com a instável mãe das crianças, Marambra (Álvarez). Após sentir fortes dores, Uxbal descobre estar sofrendo de câncer de próstata e que possui nada mais que poucos meses de vida. Mas, além disso, há mais: o protagonista possui um dom especial, a capacidade de se comunicar com pessoas mortas - habilidade esta que ele utiliza para ganhar dinheiro através de pessoas que desejam ter um contato com entes recém falecidos.
Dirigido e roteirizado pelo próprio Iñárritu, mais os novatos roteiristas Armando Bó e Nicolás Giacobone, Biutiful cresce como filme quanto mais se concentra em mostrar a vida do personagem de Bardem, com seus dilemas "profissionais", as dificuldades familiares, e a dor da própria morte anunciada, se estabelecendo rapidamente como um sensível drama sobre a vida daqueles personagens, bem ao estilo e visão do mundo do diretor. Mesmo que em sua abertura a temática sobrenatural e espiritual seja logo introduzida, os momentos subseqüentes se encarregam de enfraquecê-la, comprovando a falha dos roteiristas - assim, após presenciarmos o momento em que Uxbal sem comunica com um garotinho que acabara de falecer, o roteiro logo se esquece do misterioso dom do personagem para se focar nos detalhes realmente importantes de sua jornada, voltando a tratar da questão sobrenatural bastante tempo depois.
No entanto, o roteiro é eficaz e inteligente ao apresentar informações importantes com naturalidade e economia, como a forma de funcionamento dos negócios envolvendo a confecção e a venda de produtos falsificados, dos quais Uxbal faz parte, ou mesmo a natureza da relação entre os personagens, evitando assim diálogos expositivos. Desenvolvendo de forma sutil e delicada a situação do protagonista, Iñarritu demonstra não ter se entregado a alguns excessos cometidos em Babel, apostando mais em situações comuns e identificáveis pelo próprio espectador, desde as dificuldades diárias dele na criação de seus filhos, passando pelos seus problemas e riscos profissionais, até a sua instável ex-esposa. A relação dos dois individuos, aliás, é um ponto importante do filme pela complexidade com que esta nos é apresentada: visivelmente magoado e cansado dos atos da bipolar e imoderada Marambra (a frieza e irritação com que ele a trata no início), Uxbal decide dar mais uma chance a ela no intuito de recompor novamente a família, após ter o conhecimento do seu estágio terminal.
Atendo-se a pequenos detalhes - como o corte de cabelo do filho caçula Mateo (Estrella), que se assemelha ao de Uxbal, demonstrando muito mais empatia com o pai do que com a desajustada mãe -, o filme da vez a fatos importantes para a nossa compreensão do todo, como a ruína dos investimentos do personagem de Bardem com os chineses ou os sintomas de sua doença. Desse modo, Biutiful nos insere nesse angustiante contexto em que um pai tenta armar as melhores condições para a "entrega" de seus filhos ao mundo antes que ele parta para sempre - e mais importante ainda é o fato do personagem se manter sempre silencioso sobre sua doença durante quase todo o longa (referenciando os outros filmes de Iñárritu que, em maior ou menor grau, tratam da falta de comunicação humana), resistindo sempre em tentar resolver questões interpessoais enquanto há tempo.
Porém, a função fundamental de Uxbal no filme se dá graças ao talento inquestionável de Javier Bardem, que o compôs de forma introspectiva e contida (numa atuação bastante intimista) como um indivíduo que, por vezes seco e frio em decorrência da própria vida difícil e cheia de responsabilidades, se revela aos poucos contraditoriamente humano e solidário: afinal, ele busca o benefício próprio, mas sem esquecer da dignidade do próximo. Então, mesmo que ele, de certa forma, "explore" trabalhadores que vivem em condições sub-humanas e infrinja leis, demonstra também preocupações com as condições mínimas de vida destas pessoas, com as quais chega a manter um laço afetivo - e isso é um dado que proporciona maior complexidade ao percurso do personagem. Enquanto isso, Marambra (em ótima performance de Maricel Alvárez) consegue cativar mesmo se mostrando uma figura completamente desequilibrada, extravagante e sem a menor noção de como lidar com seus próprios filhos, parecendo em certos instantes uma Amy Winehouse da periferia.
Mas não é só a atriz que se sai bem. A direção de arte, por exemplo, faz um ótimo trabalho ao explorar o ambiente caótico e confuso que é a casa da personagem, repleta de papéis de parede igualmente extravagantes e estampados que só não são mais confusos que os móveis coloridos e destoantes de todo o resto - o que retrata com precisão a vida interior instável, intensa e também melancólica, pois o lugar surge quase sempre como um ambiente escuro e triste. Da mesma forma, o fotógrafo Rodrigo Prieto - com um câmera na mão que emprega realismo e visceralidade à história - tem o mesmo êxito ao utilizando uma exposição (quantidade de luz) levemente forte, e cores um pouco saturadas sob uma paleta acinzentada, que formam uma atmosfera triste e pobre ao contrastar a claridade da luz com as cores que fortalecem a impressão de pobreza das ruas, casas e móveis vivenciados pelos personagens.
Mesmo que estes aspectos fortaleçam o filme, os grandes tropeços do roteiro não deixam de sabotá-lo. Afinal, o dom de Axbul não apresenta nenhuma função narrativa, apenas indo de encontro com todo o resto que nos é apresentado e não assumindo influência nenhuma na história do personagem - nem sua relação com os seus "poderes" é desenvolvida; logo, não sabemos sequer se isto o incomoda ou de que forma influência na sua vida (e não temos indícios nenhum se outros personagens, além de uma misteriosa senhora, sabem de sua capacidade). Outras falhas, mais bobas e decepcionantes, acontecem no ato final, como o desfecho conveniente e forçado de Marambra, ou a tentativa da imigrante Ige de ir embora do país com o dinheiro deixado por Axbul a sua família - que soou artificial, pois não passou de uma forma de criar um suspense barato no instante final.
De um modo geral, Biutiful seria um filme melhor se o protagonista não pudesse falar com pessoas mortas e se os roteiristas tivessem assumido pra si que esta é uma sensível história de um homem que necessita reorganizar sua vida, antes que venha a falecer de um câncer, para deixar seus filhos em uma situação minimamente digna. No entanto, mesmo com essa desarmonia, o resultado é uma trágica e comovente constatação de que aquilo que o personagem conseguiu deixar para suas crianças, no fim das contas (e aqui essa expressão se encaixa com perfeição), é tão deficiente quanto a resposta que ele pôde dar para sua filha quando esta o questiona como se escreve a palavra "beautiful".
Enquanto isso, o encontro final com seu pai no "Além" não faz a menor diferença.
Cotação: Bom
ah,caio, não sei não. eu tbm estranhei o fato de terem esquecido do dom do uxbal e só tocarem nesse assunto mais pra frente com a morte dos chineses q ele vê no teto e talz, mas isso talvez tenha sido um tema introduzido para que a cena final com o pai dele não ficasse 'solta' na trama. cena pra mim que não foi irrelevante. uxbal, além de todos os seus problemas, carregava consigo o medo de ser esquecido pelos filhos, ainda mais diante da morte, e esse medo veio do fato de ele não ter conhecido seu pai. não ter convivido com ele. pareceu como uma frustração, um lamento que ele tinha. no fim foi como uma espécie de redenção poder encontrar o pai e finalmente conhecê-lo.
ResponderExcluireu gostei do fim!
Compreendo o que você diz, Poly. Mas ainda assim vejo o problema da artificialidade de se inserir a sobrenaturalidade apenas pra justificar o reencontro com o pai. Acho que essa frustração e redenção Uxbal poderiam ser trabalhadas de outra forma, que não essa. Ficou como um recurso mal empregado.
ResponderExcluirgente, comentei ontem aqui e não saiu...concordo com Caio, concordo com Poly. Mas, acho completamente dispensável aquela cena com o pai dele. Não faz sentido se não tem a história da sobrenaturalidade, que pra mim tbm é bem dispensável...entretanto, entendo a interpretação de Polyana, mas, temos de combinar que é preciso fazer força pra chegar a ela, hein?
ResponderExcluirNa verdade eles sabem bem o que estão fazendo(produtores), e o roteiro já é bem amarrado anteriormente, não da para utilizar o argumento de que certos apetrechos da historia foram "encaixados" no decorrer da criação do filme para que tudo tivesse um sentido final, criticar a historia de uma forma mais completa tudo bem, mas tanto a critica como os comentários sou obrigado a discordar, a magia desse filme esta no distanciamento total do comercial banal de outras produções cinematográficas, e também no valor da "ressignificação", no começo confesso que estranhei a questão do protagonista ter o dom de se comunicar com os mortos, mas creio que esse estranhamento foi causado muita mais pela expectativa automática que tinha do filme(realidade cruel da desigualdade e exploração), essa que não me decepcionei, mas as novas vertentes que o filme tomou só vieram a somar ao belíssimo resultado final, o filme fugiu de ser mais um drama especifico de acontecimentos hipotéticos de uma família que passa dificuldades em meio a um contexto também difícil mesmo tomando como base uma realidade bem expressa, o filme ganhou um sentido muito mais amplo, no fim alem de acompanharmos uma belíssima história, ganhamos um punhado de reflexões sobre tudo que nos circula e tudo que constitui o nosso ser, puro sentimento e realidade o filme, em nenhum momento senti o peso de questionar a obra como se não fosse a realidade mais concreta em que via no momento, a arte ganha magia com esse tipo de filme, exuberante atuação de Javier Bardem e que filme brilhante de Iñárritu!
ResponderExcluirdepois que eu descobri que o protagonista é baitola eu parei de assistir o filme..
ResponderExcluirO dom é posto para mostrar como o personagem lida com a morte. Não é a toa que toda sua postura é solidamente regida com base nesse aspecto. No final era necessário que houvesse a cena da imigrante para que a ideia no espectador de que talvez, num futuro, ela pudesse fugir com dinheiro, fosse descartada. Não é um erro, pelo contrário.
ResponderExcluirO dom é posto para mostrar como o personagem lida com a morte. Não é a toa que toda sua postura é solidamente regida com base nesse aspecto. No final era necessário que houvesse a cena da imigrante para que a ideia no espectador de que talvez, num futuro, ela pudesse fugir com dinheiro, fosse descartada. Não é um erro, pelo contrário.
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